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A Educação Cristã e a Inclusão de Alunos com Deficiência

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Na sociedade atual, um tema recorrente é a inclusão: dos direitos das minorias, dos negros e índios nas faculdades públicas, das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, das crianças com “necessidades especiais” na escola regular, etc. Mas a inclusão vai muito além de dar acesso, envolve a capacidade das pessoas de lidar com o que não conhecem.

A igreja evangélica reflete, em âmbito menor, a sociedade na qual está inserida porque, como qualquer outro segmento, é composta dos mesmos indivíduos que formam a sociedade macro. Desta forma, o crescente número de crianças e adultos com síndromes e transtornos globais do desenvolvimento, surdez ou déficit cognitivo tem levado educadores e líderes evangélicos a questionamentos pertinentes a respeito da inclusão dessas pessoas e de suas famílias no ambiente eclesiástico, já que a igreja tem se preocupado cada vez mais com a qualidade do ensino bíblico que proporciona aos seus membros.

A educação cristã sempre foi vista como articuladora da inclusão, visto que Jesus trouxe para o seu convívio indivíduos que viviam à margem da sociedade, como mulheres, crianças e aleijados, e sob esse aspecto, a igreja tem uma parcela significativa de responsabilidade na acessibilidade.

A questão a ser debatida é se o simples ato de incluir uma pessoa na sala de aula promove integração, e qual o papel do educador cristão para incentivar na escola bíblica uma ação que esteja de acordo com o referencial apresentado por Cristo. Esse debate requer não só uma análise do pensamento religioso e do papel da escola bíblica, mas da postura social diante do diferente.

O educador cristão, como o da escola regular, pode ser mais ou menos compromissado com o seu ensino. Pode priorizar a excelência ou ser acomodado em suas tarefas, estar atento ou não à demanda dos seus alunos, e interessar-se ou não em promover o conhecimento de si mesmo e do outro.   Nesse aspecto, temos que considerar a ética presente também nas ações e relações do convívio eclesiástico que se fortalece nas atitudes e comportamentos vivenciados entre educadores, líderes e famílias.

Conceitos (e Pré-Conceitos)

Para uma análise dopapel do educador cristão nas classes de escola bíblica das igrejas evangélicas brasileiras, é necessário antes um entendimento dos conceitos que já temos enraizados, mas no dia a dia, mostram-se equivocados.

 Lavoie[1] (1989) afirma que as crianças com problemas de aprendizado precisam ser tradas de maneira justa, e explica:

Tratar as crianças de forma “justa” não significa trata-las “da mesma forma”. Tratar as crianças com justiça significa dar a cada uma delas o que precisa.

Dar o que cada criança (e também o adulto) precisa é algo que está implícito na prática educacional mas que, na fala e nas ações pedagógicas corriqueiras, mostra-se falho. O vocabulário nacional está recheado de palavras e termos como: inclusão, portador de necessidade especial, aluno especial e acessibilidade, mas a prática mostra que o uso dos termos não necessariamente reflete aquilo que deve representar.

Vale ressaltar que, perante a Lei, não existe o termo “pessoa com necessidades especiais” (PNE), pois ele, além de ser amplo e genérico, não dá conta da complexidade de um indivíduo deficiente. Em 03 de novembro de 2010, o termo “Pessoa Portadora de Deficiência” foi substituído por “Pessoa com Deficiência” (Portaria da Presidência da República – Secretaria de Direitos Humanos, Nº 2.344, de 3 de novembro de 2010). Entende-se que a deficiência não se porta, não é um objeto, mas a pessoa a tem, ou seja, faz parte dela.

O termo Pessoa com Deficiência (PcD) é usado para se referir a pessoas com um ou mais tipos de deficiência (física, auditiva, visual ou intelectual), mas que de uma maneira singular, podem desenvolver habilidades e competências. A lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 06/07/2015)  no  artigo 2º diz que Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Assim, uma pessoa com TEA (Transtorno do Espectro Autista) tem os mesmos direitos que aquela com deficiência.

Por outro lado, alguém com TDA ou TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção/ Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) não é considerado deficiente, mas apenas disfuncional portanto, não se enquadra na Lei da Pessoa com Deficiência.  Contudo, deve ser considerado pelo educador cristão com muita atenção, visto que esse transtorno pode prejudicar a capacidade de concentração e aprendizado.

Talvez a maior dificuldade de um educador seja reconhecer o que de fato é TDA/TDAH, TEA ou qualquer outro transtorno, síndrome ou deficiência e lidar com isso sem ter uma formação específica. A situação se complica quando os pais definem seus filhos com TDAH sem nem mesmo terem um laudo ou usam a comprovação médica como justificativa para qualquer comportamento arbitrário. Dessa forma, o educador se vê encurralado, sem saber como lidar com a situação.

É necessário ressaltar que, em se tratando do ensino cristão e acima de tudo espiritual, o educador tem o Espírito Santo para conduzi-lo e instruí-lo, e sempre deve levar isso em conta. Todo o conhecimento acadêmico do mundo não faz frente à capacidade de uma pessoa direcionada por Deus, sensível à voz do Espírito Santo e habilitada nos ensinamentos de Jesus.

Educação Inclusiva

Ao se pensar em educação inclusiva, tem-se em mente mais interação e afetividade do que o simples ato de estar no meio. A educação que inclui é aquela que não apenas dá acesso, ou rodeia, mas estabelece interatividade, como propõe Wallon (2010):

Para que uma nova e autônoma personalidade se forme, são necessários, portanto, a alternância entre momentos de ênfase no exterior, na experimentação e nos vínculos com outras pessoas; e momentos de maior interiorização e “ensimesmamento”, para que a criança elabore, incorporando os processos de constituição de si mesma.

Na prática, as relações que se travam ao incluir algo ou alguém remete muito ao significado da palavra, que é inserir algo novo ou diferente àquilo que já é existente. Incluir vem do latim includere, e significa “fechar em, inserir, rodear”. O que em teoria é uma excelente ideia, na prática mostra-se desafiador, porque o ato de colocar algo novo ou diferente àquilo que já está acomodado, fechado, geralmente causa desconforto.

Mas, a inclusão referida aqui trata-se daquela que promove a interação das pessoas com deficiência e outros transtornos nos ambientes educacionais, o que inclui a igreja. Contudo, o que é uma situação crescente e cada vez mais comum, não necessariamente tem sido mais fácil. A inclusão, como qualquer outro processo social, é complexa e requer flexibilidade das pessoas envolvidas nele.

Vygotsky[2] afirma que “na ausência do outro, o homem não se constrói homem”. Esse conceito de que o homem se forma em contato com o outro, nas relações que se desenvolvem em sociedade, reforça o fato de que sozinho ninguém se constrói, ninguém cresce. Mas o ato de crescer com alguém traz intrínseca a necessidade de relacionamento, de contato diário, de troca de experiências e afetividade.

Segundo Enri Wallon, emoção e afetividade são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo da pessoa, pois a emoção e a afetividade une os indivíduos, e a evolução que essa união provoca é a construção de novas estruturas da consciência.

O fato é que, experimentar e aprender com ou outro não é um ato indolor. A Bíblia Sagrada em Provérbios 27.17 diz: “Assim como o ferro afia o ferro, o homem afia o seu companheiro”. O desenvolvimento social requer lapidação de si mesmo e do outro, mutuamente, e essa necessidade de construir-se ser-humano é fundamental para as crianças, pois se sabe que a infância é o período de maior desenvolvimento humano, seja ele físico, cognitivo ou psicossocial. Assim, não se pode pensar num desenvolvimento educacional sadio das pessoas com dificuldades de aprendizagem se estas não tiverem a oportunidade de crescer junto com outras, sem criar laços sadios de afetividade.

A inclusão não deve se encerrar nela mesma, gerando o simples ato de estar no meio, mas deve vir seguida da experimentação, da construção com o outro. Para que o ser humano incorpore conceitos, ele precisa ser lapidado, continuamente transformado no seu eu, na sua afetividade, inteligência e ações, e tal processo não ocorre no isolamento. Mas, como construir sob algo desconhecido?

Toda pessoa é especial

É comum o uso do termo “criança especial” por especialistas, pais, professores e até leigos no assunto, mas ao se deparar com uma roda de crianças neurotípicas, o termo soa fora de tom. Pode-se ter uma ideia melhor sobre isso com Tiba (2011), que diz:

Por que o ser humano quer sempre se destacar da multidão? Porque ninguém gosta de passar despercebido. É um feedback positivo de validação mútua, de si e dos outros. Isto é, validamos quem nos valida. O sucesso é a validação da nossa vitória pessoal.

Toda criança ou adulto se sente ou deseja sentir-se especial, e ao estar com uma outra com necessidades específicas, parece contraditório ouvir que aquela outra é especial. Já houve aluno questionando o professor: Ué, eu também não sou especial? Uma verdade absoluta que não pode ser contestada. Para apresentar as necessidades de uma criança à outra de maneira específica, sem supervalorizá-la ou menosprezá-la, torna-se necessário desconstruir o conceito usado anteriormente e reconstruir a conduta e a fala.  Usar jargões não define quem uma pessoa é. Distinguir diferenças requer tempo e clareza, portanto, não se valida uma pessoa por um rótulo.

Tratando-se de rótulos, o mundo atual é fascinado por eles. O que não tinha nome anos atrás, hoje já é facilmente compreendido através de uma simples palavra, como por exemplo, bullying. Mas o que pode facilitar a vida, ao trazer uma compreensão clara e rápida, pode também gerar mais dificuldades, impondo barreiras para a inclusão. Um professor diante de um rótulo pode acomodar-se na sua tarefa de educar, afinal, se o aluno já tem I.S.S.O. ou A.Q.U.I.L.O., sua ação como educador não fará muita diferença para ele no final do ano. O próprio aluno rotulado pode acreditar que já está sentenciado a não aprender, não se desenvolver, não estabelecer vínculos, e acomodar-se, o que não é uma condição natural do ser humano, como descreve Barbirato (2009):

Existe no ser humano uma necessidade inerente de ensinar, o que tanto impede a absorção em si mesmo como permite a transmissão de valores sociais e culturais. Nos dias de hoje, dar e receber, criar e manter são verbos conjugados em diversos planos de relações, e não só na família […].

Mas, afinal, como lidar com os rótulos e ao mesmo tempo explicar para um coletivo, como uma sala de aula, que um indivíduo é diferente, que possui um modo diferente de compreender o mundo à sua vota, que requer mais atenção, mais tempo e/ou mais espaço para expressar-se? Como lidar com o próprio indivíduo sem que ele se sinta envidraçado atrás de explicações para o seu comportamento, sua dificuldade e suas necessidades?

Não há respostas prontas. Cabe ao educador cristão compreender-se parte do processo e, ao trabalhar com pessoas com dificuldades de aprendizagem ou deficiência, ou ao deparar-se com elas na rua, no mercado, na escola ou na igreja, ter um olhar diferenciado, que não pouse sobre suas faltas, mas sobre suas singularidades e o que ela pode vir a realizar com o estímulo apropriado. Ao mudar o ponto de perspectiva, abre-se o coração para perceber o diferente como belo, criativo e vivo, e toda a relação se torna especial.

Acessibilidade é uma questão de educação

A etimologia da palavra acesso remete a algo em movimento, o que está muito ligado ao significado da palavra educar, que no latim refere-se à ideia de levar uma pessoa para fora de si mesma, conforme descreve Chaves (2012):

Educar é um movimento contínuo, um processo que leva ao desenvolvimento integral do potencial humano, preparando-o melhor para interagir com os seus sentimentos, suas habilidades pessoais, seus recursos e seus conhecimentos.

Diferente de incluir, dar acesso não é apenas colocar na roda, mas abrir caminhos para que se chegue a um lugar determinado. É um ato que exige ação e, muitas vezes, disposição, pois frequentemente torna-se necessário construir estradas que antes não existiam, estabelecer pontes, levantar andaimes e até fechar outras vias.

Qualquer obra traz transtornos, pois produz ruídos, sujeira, entulhos e mudanças nem sempre agradáveis. Uma obra exige ferramentas e materiais específicos, de acordo com o tamanho e a espécie da construção, bem como sinalização para que não aconteçam acidentes. Não são diferentes as construções das relações educacionais. Há sempre entulhos sentimentais que precisam ser removidos, a comunicação que necessita ser clara e no tom certo, para não se tornar um barulho estridente, e a poeira da acomodação que requer limpeza constante. A habilidade é muito importante para o uso adequado das ferramentas, que são os recursos instrucionais e a didática, mas a sensibilidade é essencial para um fino acabamento.

Rubem Alves diz que “a educação se divide em duas partes: educação das habilidades e educação das sensibilidades… Sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentidos. Os conhecimentos nos dão meios para viver. A sabedoria nos dá razões para viver”. A habilidade de um engenheiro dá a ele condições de projetar um viaduto que melhore o fluxo da cidade, mas a sua sensibilidade faz com que o viaduto se integre à arquitetura, tornando-a mais humanizada. O educador tem também a habilidade para criar metodologias e recursos que viabilizem ao aluno chegar aos objetivos do ensino, mas é a sua sensibilidade que o fará enxergar aqueles que, por um motivo ou outro, ainda não encontraram o caminho para o aprendizado.

Assim, o educador deve estar comprometido com o seu aluno, numa disposição física, mental, emocional e espiritual para uma empreitada de mudanças. A educação da acessibilidade (a que tão brilhantemente foi ensinada por Jesus)  é  como uma cidade em obras, que promove momentos de tensão, de imobilidade e desconforto, mas ao final vias mais largas estarão disponíveis para maior fluxo das ideias. Haverá novos e maiores espaços para os relacionamentos e estarão abertos novos caminhos para lugares ainda não conhecidos. 

A valorização do ter e do saber em detrimento do ser

Entre tantos conceitos, dois muito valorizados na sociedade intelectualizada são o do saber e o do ter: Saber realizar, criar, agradar, maximizar, ouvir, falar, ultrapassar, e ter a melhor nota, posição, comportamento, educação, popularidade, estética, status, etc.

Fracasso é um termo usado frequentemente para definir um sujeito que apresenta-se inapto para realizar as tarefas propostas pela escola, ou seja, ele não sabe fazer, portanto, não tem habilidade. O que pouco se leva em conta é quem é esse sujeito, para que se possa dar a ele as ferramentas certas na construção do seu conhecimento.

Retomando a ideia da construção, não é possível levantar pontes com as mesmas ferramentas e materiais usados para se erguer um edifício. Algumas coisas podem se assemelhar, mas certamente há recursos específicos para cada tipo de obra. Do mesmo modo, cada aluno precisa de um tipo de recurso. O seu desenvolvimento dependerá muito do tipo de instrumento que será usado e que material será acrescido à sua base. É a construção do ser que importa no final de tudo.

Um sujeito não fracassa por não ter esta ou aquela habilidade, ou por não saber fazer isso ou aquilo. Uma pessoa fracassa quando não se sente capaz de ter ou saber ou se vê como uma obra obsoleta e abandonada, vazia de identidade, de gente, de graça. Nesse aspecto a igreja é uma instituição linda, pois abraça todos, cheia do amor incondicional de Cristo que restaura o valor humano à condição de filhos de Deus!

Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é.

1 João 3.2


[1] Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=6JKd4j99VW4&list=PLkADuEn0zW1EJN80vHt6ZjXFpLC1xHGUf>

[2] Disponível em <http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/lev-vygotsky-teorico-423354.shtml>